segunda-feira, 1 de julho de 2013

UM ENFOQUE PSICOSSOCIAL DA MORTE: SEUS SÍMBOLOS, SIGNIFICANTES E ENIGMAS.



Fonte:http://www.ahistoria.com.br/simbolo-da-morte-caveira/simbolo-da-morte-caveira/


                  Autor: Jorge Roberto Fragoso Lins[1]
      
Resumo: Os símbolos representativos em torno da morte fomentam um imaginário de medo e angústia, aumentando ainda mais o enigma sobre a finitude do homem. Este artigo pretende construir um campo de saberes que envolve a sociologia, antropologia, história, filosofia, psicologia e a psicanálise a respeito do fenômeno da morte, trazendo alguns postulados e mudanças culturais que existiram no transcurso da história da humanidade e que tanto inflenciaram no imaginário coletivo.

Palavras-chave: Morte; símbolos; significantes; enigmas.  

INTRODUÇÃO

A cultura se constitui em um mecanismo dinâmico, adaptativo e cumulativo. Sua celeridade é notória, entretanto, obedece a um tempo que é pertinente a construção dos próprios elementos culturais que se enraízam no seio de uma sociedade.
Definir o que é cultura não é uma tarefa fácil. A cultura evoca interesses multidisciplinares, sendo estudada em áreas como sociologia, antropologia, história, comunicação, administração, economia, entre outras. Em cada uma dessas áreas ela é trabalhada a partir de distintos enfoques. Tal realidade concerne ao próprio caráter transversal da cultura, que perpassa diferentes campos da vida cotidiana. Além disso, a palavra “cultura” também tem sido utilizada em diferentes campos semânticos, em substituição a outros termos como “mentalidade”, “espírito”, “tradição” e “ideologia”(CUCHE, 2002, p.203). No pensamento iluminista francês, a cultura caracteriza o estado do espírito cultivado pela instrução. “A cultura, para eles, é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua história”. (Ibid, p.21)
Entendemos por elementos culturais aqueles que existem nas mentes das pessoas e que podem ser simbolizados, como os símbolos criados e compreendidos por um povo, seus mitos, suas religiões, o comportamento e os costumes mais usuais. Em suma, cultura é a herança social que passa de uma geração a outra. Uma mudança cultural só ocorre quando certas ferramentas agem como força motriz, de forma a criar novos conceitos, a assimilar conceitos de outras culturas ou a fomentar descobertas de algo ainda desconhecido da própria sociedade. Intrinsecamente a isto, estão as representações que partirão desses novos conceitos e que alimentarão o imaginário de um povo, com suas imagens, com seus discursos, crenças e símbolos. Assim, uma palavra ou imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto ou imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-lo ou explicá-lo. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão (JUNG, O HOMEM E SEUS SÍMBOLOS, p.20).
A partir da imagem, seguiremos para a definição de imaginário. “O vocábulo imaginário, ao assumir a condição de substantivo, apresenta-se como resultado de fusão dialética entre imagem e imaginação, pois a criação de imagens pressupõe o uso da imaginação (TEIXEIRA, 2003). Sendo a imaginação compreendida como a capacidade de criar ou representar objetos ausentes, ou ainda, como fantasia, devem-se destacar as diferenciações entre fantasia e imaginário. “O imaginário possui um compromisso com o real (...) recria e reordena a realidade, encontrando-se no campo da interpretação”. (LAPLANTINE B & TRINDADE, 1996, p. 79) Já a fantasia é uma criação da imaginação que não deixa de ter uma relação com a realidade, porém não existe uma relação de compromisso, ou seja, uma relação identificatória com a mesma.
Segundo Lacan (LACAN, apud KAUFMANN, 1996, p. 261) não há meio de compreender o que quer que seja da dialética analítica se não afirmarmos que o eu é uma construção imaginária. Isso, o fato de ser imaginário, não retira nada dele, desse pobre eu – diria até que isso é o que ele tem de bom. Se ele não fosse imaginário, não seríamos homens, seríamos luas. O que não quer dizer que basta termos esse eu imaginário para sermos homens. Podemos ser ainda essa coisa intermediária que se chama louco. Um louco é justamente aquele que adere a esse imaginário, pura e simplesmente. Para Lacan (1966-1967) mais do que um resto do psiquismo imaginário infantil no inconsciente, a fantasia está estruturada como linguagem, uma vez que é uma frase com estrutura gramatical, o que justifica que se possa falar de uma lógica da fantasia. A exemplo podemos citar o texto de Freud (1919). Nele, a fantasia “Uma criança é espancada” não é nada além da articulação significante, representada pela frase “Uma criança é espancada”.         
Toda essa cadeia imaginária de representações e símbolos que inunda as diversas culturas representa significantes que se misturam a própria cultura, dando sentido simbólico às coisas e, ao mesmo tempo, possibilitando que novos significantes sejam criados. Toda formação cultural passa por essa variável que é o significante, construindo temáticas e símbolos que irão ser representados no discurso de cada povo. Assim ocorre com o imaginário de um povo em relação à morte ou o que ela de fato representa, um grande enigma. Não bastasse a sensação de impotência em relação a ela, de que mais cedo ou mais tarde todos que se encontram vivos irão experienciar tal acontecimento, somos levados por uma cultura de símbolos que a deixa ainda mais assustadora, como por exemplo, a simbologia de um esqueleto carregando uma foice, o anjo da morte ou, então, com um alto teor de cobrança que nos faz temer, o temido e inescapável juízo final, que nos reporta a dois outros símbolos, o do purgatório e o do inferno.
A morte pode ser concebida como um dos maiores e mais importantes estados fronteiriços e liminares. Outros simbolismos também relacionam-se à ambiguidade do limiar, como a ponte, que é “a passagem da Terra ao Céu, do estado humano ao estado supra-humano, da contingência à imortalidade, do mundo sensível ao mundo suprassensível”, e as portas e os portais. Quando não se está nem de um lado, nem de outro, corre-se o risco de cair no abismo. É um instante em que, tecnicamente, não se é nada e tudo pode ruir. Do outro lado, mistério... (DE FRANCO, p. 45).
A travessia entre um estágio e outro “acende” os pavores humanos, dando espaço às criações imaginativas, que tentam replicar o universo anterior, conhecido, há pouco afastado. A insegurança da morte abandona o indivíduo à sua consciência confusa, em meio ao mistério do além daqui, do depois da morte (Ibid, p. 43).
Veremos, durante todo este trabalho que a morte ocupa esse lugar social e psicológico da ambiguidade incômoda, entre dois estados, o conhecido e o desconhecido, entre a individualidade e o coletivo, este último representado pelo mergulho arquetípico do ser humano ao morrer no universo do Além, elemento do inconsciente coletivo ou do imaginário (Ibid, p. 42).
Assim, como tudo que envolve o ser humano é passível de transformação, que vai de sua genética até seus princípios ideológicos e comportamentais, a morte, como elemento cultural, também já passou por diversas temáticas e representações até que chegássemos ao que possuímos na atualidade.  O nosso artigo, visa compreender como os símbolos, os significantes e o próprio enigma que envolve a morte implicam na forma como o nosso psíquico reage em relação a ela, quer dizer, como nos comportamos ao nos defrontarmos com o fenômeno ou com seu significante. Para isso, faremos um breve apanhado histórico, assinalando as principais mudanças ocorridas em torno da morte na trajetória da humanidade. Ter esse apanhado nos fará compreender melhor as representações que possuímos atualmente sobre a morte e com isso esperamos proporcionar subsídios para as mais diversas ciências que têm o ser humano como foco principal de suas pesquisas e preocupações.          

DESENVOLVIMENTO

O intrigante na trajetória da morte é o próprio enigma que fomenta as representações e mudanças a respeito dela. Como um acontecimento tão singular e que envolve apenas o falecido e o grupo a ele relacionado, pode ao mesmo tempo ser ativo e passivo a tantas mudanças em um contexto plural de uma ou várias sociedades? A isso poderíamos responder que a (morte) como fenômeno produz várias implicações como, por exemplo, o fator psicológico, as representações simbólicas e o próprio enigma que por si só ela representa. Podemos centralizar a esses fatores, no símbolo, que para Jung (1875 – 1961) ao mesmo tempo manifesta e impulsiona a psique. Sobre esta visão podemos compreender que é através dos símbolos que são trazidas as novidades para a consciência. Isto nos situa no histórico, em algo que é contextualizado e que será apresentado numa dimensão de tempo, espaço e relação definidos. Jamais poderemos isolar um símbolo. Se tal acontecesse, ele se tornaria apenas um sinal, pois o símbolo para se constituir como tal dependerá da consciência que o considera.
Não é fácil tratar do tema morte, pois o enigma e o mito que por si só ela representa, deixa a qualquer ser humano pouco à vontade para falar a respeito dela, como se observa claramente com a posição de negação em que nos colocamos frente a ela. Segundo Ariès (1990), é a partir do século XX que a civilização ocidental passa a esconder a morte, evitando falar sobre ela, numa tentativa de proteger a vida. Como consequência, a atitude mais adequada para lidar com a morte de um ente querido seria fingir que nada aconteceu, que nada mudou, contribuindo, dessa forma, para o medo diante da morte, do desconhecido. É também a partir do século XX que a morte deixou de ser apenas um acontecimento isolado para ser objeto de pesquisa de psicólogos, sociólogos, antropólogos e historiadores.
Ariès fala da morte como morte invertida. Existiria uma inversão nas características da morte. Ela teria que acontecer despercebida, pois a deixaria de ser considerada um fenômeno natural ao ser vivo, passando a ser um fracasso. Tal representação leva a uma negação, a uma não aceitação da morte e a uma falsa sensação de que viveremos eternamente, aumentando, assim, o medo diante da morte. É importante lembrar nesse aspecto que as representações se tornariam uma linguagem e, como tal, possuiriam os seus símbolos que alimentam o imaginário coletivo de toda a humanidade.
No período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Freud (1856 – 1939) ficou bastante impressionado pela crueldade da guerra e das milhares de vidas que foram ceifadas, escrevendo a respeito da morte em seu artigo “Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte” (1915). Freud ressaltava que falamos da morte como se nunca tivéssemos que ser surpreendidos, isto é, como se a morte só ocorresse ao outro e, ainda assim, como obra do acaso. Afirma que, “no inconscientemente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”. Em relação a encarar a morte, mesmo do outro, não somos capazes de concordar que quem sofre somos nós, e não os mortos, e por isso não há necessidade de se fazer algo para eles. “A consideração pelos mortos que, afinal de contas, não mais necessitam dela, é mais importante para nós do que a verdade e, certamente, para a maioria de nós, do que a consideração pelos vivos” (Freud, 1915). Além de refletir sobre o enfrentamento da própria morte, Freud, em “Luto e Melancolia” (1917), aborda a morte de alguém próximo, isto é, a perda e suas consequências para quem fica. O próprio Freud enfrentou, não uma, mas algumas vezes, a morte de frente. Tanto em relação à perda de sua filha, de seu filho e de seu neto, quanto em relação à aquisição de um câncer, em 1923, que o acompanhou até seus últimos dias.
A negação da morte poderá ocorrer de diversas formas, tanto consciente como inconscientemente. Para Cassorla (1998), a negação da morte é percebida quando ficamos sem saber como agir diante de um conhecido que perdeu um ente querido, não lhe dando os pêsames, evitando ir ao velório ou contando piadas no velório. Atitudes como essas parecem colaborar para a percepção errônea de que tudo está bem, de que nada aconteceu, por não querermos vivenciar o sentimento de dor e de sofrimento pela perda. Negar que um dia iremos morrer é colocar-se contra a própria finitude. Para Cassorla, a vida é o maior bem que temos, mas, para vivermos bem, temos que aceitar que a morte faz parte da vida e que todos morreremos algum dia.
Negar a morte é não querer entrar em contato com as experiências que nos causam sofrimento, permitindo, assim, segundo Kovács (2002), fantasiar a ilusão da imortalidade, dando a ideia de força e de controle sobre o medo da morte.
O medo da morte "é a resposta psicológica mais comum diante da morte", sendo, portanto, um sentimento universal e vital, pois ajuda o indivíduo a superar os instintos destrutivos[2].  
Para Freud, assim como em muitos outros pontos de nossa vida psíquica, o homem primeiro permanece inalterado no que se refere ao seu inconsciente. Entretanto, quando a morte leva alguém que nos é caro, fruto de um enorme investimento realizado pelo Eu, este mesmo Eu entra em conflito já que o abalo provocado pela perda introjeta a possibilidade de ele ser o próximo objeto de amor que venha a ser perdido, sucumbido pela morte. Segundo ele, antes que ocorresse tal perda, existiria uma impossibilidade pelo inconsciente da representação da própria morte, já que em si o fenômeno possui um conceito bastante abstrato e apenas a partir de um confronto com a própria finitude é que se consegue perceber a dimensão de uma perda, sobretudo da perda do mais importante e cobiçado objeto de amor, fruto do maior e mais importante investimento do Homem,  a preservação de sua própria vida.
O filósofo Karl Jaspers (1883 – 1969) traz uma valiosa contribuição nesta discussão, ao ver a morte como uma situação-limite, mas, sobretudo, com a possibilidade de vê-la como sendo um importante componente para a estrutura interna do homem. Em sua visão psicanalítica, Jaspers  coloca o sujeito não apenas numa situação de mero expectador de sua própria morte, mas numa condição de reconstrução, de se olhar para dentro de sua própria alma, de se olhar no espelho e ver sua própria consciência, reconhecendo-se ou não, como o sujeito ativo de seus atos praticados.
Na raiz filosófica, na cultura e entre as religiões, a morte sempre provocou as mais complexas e variadas discussões e interpretações. Não raro também são manifestados os símbolos imaginários e fantasiosos ao seu respeito.
Para Heidegger (1889-1976), filósofo do Existencialismo, o homem existiria para a morte. Para as religiões, a morte não seria um fim, mas uma passagem, uma transição para uma nova vida. Já para os céticos, após a morte não existiria absolutamente nada. Então, por que temê-la tanto? Teriam a filosofia, a cultura, as religiões e os céticos, de alguma forma, fracassado em suas interpretações, deixando, assim, um vazio, um vácuo a ser preenchido por um imaginário sombrio e assustador? Ou, diante de equívocos apregoados como verdades absolutas, as próprias religiões e as representações existentes na cultura de cada povo disseminaram símbolos que representariam o quanto a morte seria assustadora e nefasta com aqueles que não compartilhassem com seus ideias, no caso das religiões, ou de criar símbolos que assustam e provocam o pavor no imaginário do ser humano, no caso da cultura. Quaisquer que sejam as repostas, se de fato elas existem, fica claro que a morte é um grande enigma, e o objetivo deste trabalho é mostrar o quanto de símbolos e significantes dão sentido ao término de uma existência.
A morte é uma grande metáfora que para o homem primitivo chegava a ser incongruente de sentido, podendo ser menos cruel e aterradora para esse homem que se situava naquele momento histórico da humanidade.
Muitas metáforas poderiam auxiliar a humanidade pré-civilizada a elaborar o significado da morte: a do dia e da noite, a dos ciclos dos astros, a das estações do ano, a metáfora da criança e do adulto... A natureza tem muitos elementos que nos colocam frente ao mistério dos ciclos de início e término, analogias da experiência vital, cujo fim e percalços estão submetidos ao grande fluir do destino. E o mais importante dessas metáforas é que o homem, através do contato com elas, volta a perceber-se dentro de seus limites biológicos, dentro de sua condição de animal, situação muitas vezes negligenciada pela sociedade contemporânea. (DE FRANCO, 2010, p. 47)
O homem pré-histórico teve de relacionar-se com a morte, assim como teve de buscar alimentos, criar ferramentas, descobrir potenciais a serem dominados na natureza... A morte seria mais um dos desafios ao homem daquele tempo. É provável que, ao refletir sobre o significado da morte e os ciclos biológicos e naturais, ele se conecte com o que denominamos de “sobrenatural”, com as forças e explicações que transcendem sua experiência imediata. Portanto, a morte pode ter sido um dos caminhos para se conceber o que hoje entendemos por religião. E mais, a morte, os mortos e como cada civilização lida com esse tema trazem materiais riquíssimos à História, sendo um dos principais elementos de análise de uma cultura antiga. Portanto, a morte merece nosso “carinho” analítico e acadêmico. (Ibid, p. 47 – 48)
A pré-história revela-nos que os povos “primitivos” acreditavam em alguma forma indefinida de sobrevida. Em inúmeros casos, os ritos de sepultamento em posição agachada (ou fetal) revelam a crença de que os mortos eram chamados a renascer para outra vida[3]. Segundo Ariès (2001, p. 28), o moribundo cumpria os últimos atos do cerimonial tradicional, existindo, primeiramente, o lamento da vida, uma evocação triste, mas muito discreta, dos seres e das coisas amadas, uma súmula reduzida a algumas imagens. Chora e suspira. Mas essa emoção não dura como mais tarde, existindo o luto dos sobreviventes. É um momento do ritual. Em seu artigo “Luto e Melancolia” (1917), Freud fala sobre a morte de alguém próximo, a perda e suas consequências para quem fica. As consequências destas perdas gerariam por sua vez o luto, principal manifestação do Eu, com linguagem própria, de que ele está sofrendo pela ausência de um objeto amado que deixou de existir como figura física que interagia e ocupava um espaço na vida do sujeito, como os pais e outros entes queridos.
O luto poderá também ser compreendido como à perda de alguma abstração que ocupava um lugar como objeto cobiçado pelo sujeito e que se fazia importante na vida dele, como a perda da liberdade, o término de um relacionamento amoroso, e assim por diante.
Conforme foi exposto por Ariès a respeito da não existência do luto no século XII, não poderíamos deixar de questionar o por que da não existia de tal sentimento de falta por quem faleceu, já que o luto é a mais intensa expressão que assinala a perda de alguém amado. Segundo o mesmo autor, “só durante a segunda metade da Idade Média, do século XII ao século XV, existiu apego apaixonado às coisas e aos seres possuídos durante a vida. O novo costume cultural em relação ao fenômeno faz com que a humanidade transpasse a fase anterior e vivencie o novo que, nesse caso, seria o apego e o apaixonamento pelas coisas e pelos seres possuídos”. Substancialmente a isso, viria, então, o sofrer por ter perdido alguém que se amava para a morte, constituindo, assim, o luto. Diante desse processo de transição cultural o que se coloca como enigmático é sem dúvida a própria transição, melhor dizendo, como essa mudança de costume ocorreu. Teria a cultura a força de impor o que sentimos ou não por alguém, um alguém como o pai, a mãe ou qualquer outro por quem nutrimos algum sentimento de apego? Mas, se tal sentimento já existe de forma natural a construir os laços afetivos, por que antes não existia essa demonstração de dor que representa o luto? Seria o Grande Outro que neste caso estaria representado pela cultura que iria impor regras a respeito do que se sente por alguém querido e amado?
Estar de luto é lamentar a perda. Trata-se, para Freud, de um processo interior difícil, lento e doloroso de adaptação a essas perdas. Segundo Judith Viorst em seu livro “Perdas Necessárias” (1988), o término dessa lamentação depende de diversos fatores, dentre eles o modo como sentimos nossa perda, da idade de quem perdemos, da nossa própria idade, de como ocorreu à morte, de nossas forças interiores e do apoio externo, além de depender de nossa história pessoal. É uma etapa necessária para superar a dor. Já para Bromberg (2000), o luto é “uma ferida que precisa de atenção para ser curada”. Para que haja esse processo de cura é necessário reconhecer e aceitar a realidade de que a morte ocorreu e que a relação com o falecido agora está acabada. Além disso, é preciso vivenciar e lidar com as emoções e problemas que resultam dessa perda. Tudo isso leva um período de tempo e depende exclusivamente de cada indivíduo e da sociedade em que este vive, pois cada cultura tem a sua maneira de encarar a morte.
Segundo Lebrun (2004, p. 29), a realidade psíquica do sujeito se organiza a partir da confrontação com a assimetria de base da conjuntura familiar, que apenas representa a estrutura da linguagem. Com efeito, é o Outro como lugar da linguagem que é presentificado pela mãe e é no interior desse sistema linguageiro que deverá ter lugar a operação que introduzirá o futuro sujeito a poder sustentar seu desejo singular, não sendo outro a não ser o pai o agente dessa operação, o pai que terá o encargo de conduzir a possibilidade de uma outra intervenção no lugar onde a mãe consente em ser faltante.
Os primeiros representantes da linguagem para o sujeito é a mãe e o pai, caso a mãe permita que o pai participe dessa relação, evidentemente. Essa linguagem que está incorporada à cultura, mas que também é própria, individual, possibilitará que o sujeito se aliene da própria linguagem. Entretanto, não é a linguagem do Grande Outro, mas a do Outro. A problematização se encontra justamente aí: como a cultura ou o Grande Outro transforma os sentimentos (significantes), ora não sofro e nem me permito sofrer por ter perdido alguém que amava; ora me apego apaixonado às coisas e aos seres possuídos durante a vida. Estariam envolvidos nessa transição cultural novos símbolos e significantes que provocaram as mudanças de posturas desses sujeitos? Símbolos como, por exemplo, o do juízo final, que atormentariam não só o moribundo como os que ficaram? 
Le Goff (2002) afirma que o purgatório firma-se no imaginário cristão como lugar mais “geograficamente” definido no Além por volta do século XII, quando a Europa medieval passa por profundas transformações socioeconômicas.
            Presumimos, baseados nesses símbolos assustadores disseminados pela religião, que foram eles, os símbolos, que incutiram no imaginário do homem daquela época não só o medo assustador de se defrontar com tamanha ‘realidade’, negando-a, mas também os apegos às coisas e pessoas que morriam. Portanto, o homem exclui por completo de sua vida a morte como questão a ser refletida e encarada como um acontecimento decorrente da finitude de sua existência. Esta tentativa de negação é inerente ao complexo mecanismo de defesa do Eu, já que, ao se defrontar com o desconhecido, como a perda de seu mais desejado objeto de amor, que é a sua própria vida, ao se confrontar com tantas outras realidades que lhe causam medo e sofrimentos, ele simplesmente descarta. Talvez seja finalmente este o motivo de pouco se falar no assunto em questão.
A espécie “merece” a morte, na medida em que cometemos o pecado original, que trouxe uma crise de valores, invertendo a lógica da vida e da morte. (DE FRANCO, p. 84)
O medo medieval é totalmente compreensível diante de um cenário bastante instável. A morte nesse contexto surge envolvida pelo horror do julgamento sobre as ações dos indivíduos. A possibilidade de se queimar eternamente no inferno, associada à imagem do Deus punitivo, ao qual se deve temer, configuram um imaginário que opõe prazer e salvação, atrelando o primeiro à noção de pecado e condenação eterna[4].
Da Idade Medieval até, afora, observa-se que muitos desses símbolos ainda estão presentes no imaginário coletivo das pessoas, provocando os mesmos temores de antes. A questão da salvação da alma até hoje ao neles que acreditam na sobrevivência do Espírito após a morte. No entanto, não há como não associar esse temor de não ter a sua alma salva com a simbologia criada pela teologia católica do juízo final, onde Deus, Criador e Pai de todos nós, designaria a sentença de cada um de seus filhos, atribuindo a recompensa ou o castigo definitivo (eterno) de cada alma.  Ou, então, o juízo geral, universal ou final, esse aconteceria publicamente no fim do mundo, depois da ressurreição dos corpos.
O simbolismo do juízo final está incutido em muitas culturas e representa até hoje o maior e mais terrível símbolo associativo da morte, criando no inconsciente de quem possui a crença de uma vida além-túmulo, a angústia de se ver castigado por Deus, o Pai Todo Poderoso, a Instância Maior da Lei, a Própria Lei. Este Pai que ocupa a subjetividade dos que creem Nele e se insere como Lei nas consciências humanas. A angústia de enfrentar a sentença desta Lei representa a de enfrentar a própria consciência, que antes fora suprimida, e este enfrentamento é assustador, pois ao mesmo tempo em que se enfrenta a própria consciência, também se coloca sob os olhos de Deus, o Pai Todo Poderoso, a Instância Maior da Lei, a Própria Lei.
Para Jung (1875-1961), Deus seria menos transcendente e Criador e mais imanente e interior na realidade psíquica de cada um. “É apenas através da psique que podemos estabelecer que Deus age sobre nós”. Para Jung, existe um Arquétipo de Completude no Inconsciente Coletivo que ocupa uma posição central e ordenada e se aproximaria do Deus-imagem. Seria o Arquétipo da Unidade. “O processo de individuação, subordina o múltiplo ao Uno. O Uno, porém, é Deus, o qual, em nós, corresponde à imago Dei, a imagem de Deus”.
A ideia do Uno sempre esteve presente desde os primórdios da Filosofia, como em Orfeu e Pitágoras, e em Plotino, no início da era Cristã, quando teve seu apogeu e então ocorreu sua substituição pelo Arquétipo do Cristo.
Jung postulava que a imago Dei ou imagem de Deus seria a realidade de uma imagem de Deus como um Símbolo unificador e transcendente, capaz de reunir fragmentos psíquicos heterogêneos ou unir opostos polarizados. Para Jung, a imagem de Deus indicaria uma realidade que transcenderia a consciência e que seria excessivamente numinosa detendo a atenção e atraindo energia. Seria uma ideia que fora imposta à humanidade, tendo sido compartilhada nas mais variadas regiões do mundo e em eras bem distintas. Podemos, então, definir o pensamento de Jung em relação a Deus que Ele seria uma imagem única, dominante supremo na hierarquia psíquica, e estaria relacionada ao próprio Self. Esclarecendo a diferença entre Deus e a imagem de Deus, diz ele, “É por causa da constante indiscriminação entre objeto e imago que as pessoas não conseguem fazer uma distinção conceitual entre Deus e imagem de Deus, e, portanto, pensam que, quando se fala em imagem de Deus, está se falando de Deus e apresentando explicações teológicas. Não cabe à psicologia, como uma ciência, exigir uma hipostatização da imagem de Deus.
Novas concepções em relação ao pós-morte foram disseminadas, dando uma nova visão ao tema, mas nem por isso a morte deixou de ser temida pela grande maioria das pessoas, talvez por causa ainda desse imaginário sombrio em relação ao fenômeno pregado pelas religiões: o próprio enigma que ela representa, as incertezas sobre o que irá ocorrer depois do último suspiro, e, somado a isso, a onipotência do narcisismo humano, o estar sempre apaixonado por si mesmo e não considerar, jamais, que tal situação de vida e de onipotência possa um dia se extinguir. Freud fala de estar apaixonado pelo objeto. “O apaixonado consiste num transbordar da libido narcisista sobre o objeto, tendo a virtude de cancelar repressões e restabelecer perversões” (FREUD, 1914/1988).
O apaixonamento em questão seria o da própria existência e de tudo relacionado a ela que trouxer felicidade e gozo. O apaixonamento representaria, assim, uma via imediata de acesso ao ideal do eu e à onipotência narcísica. Recorrendo às ideias de Karl Jaspers (1883-1969), o ser humano, mesmo diante das duas únicas certezas que possui sobre a vida, a de que um dia nasceu e a que um dia morrerá, sempre afastará a última de seu caminho por ser algo extremamente assustador. A função do afastamento que corresponde a de uma negação serve para que o homem vivencie com plenitude sua existência. Entretanto, em certos casos, esta função é extrapolada e o sujeito viveria uma onipotência narcísica que o levaria a pensar que jamais passará pela fatídica experiência. Ventilando uma possibilidade, poderíamos dizer que o Ego estaria tão assustado de passar por essa experiência que o melhor e mais prazeroso é colocar-se na posição de imortalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 1961, através da obra do psicólogo europeu Serge Moscovici (1928-1975), intitulada A psicanálise, sua imagem e seu público, as representações sociais tiveram o seu princípio teórico constituído. A Teoria das Representações Sociais objetivam explicar os fenômenos ocorridos com o homem a partir de uma perspectiva coletiva, considerando a individualidade de cada sujeito. A de Moscovici provoca um estudo das simbologias sociais, ou seja, das trocas simbólicas que existem nos mais variados meios sociais. Moscovici salienta que as trocas simbólicas influenciam  sobremaneira na construção do conhecimento compartilhado que está impregnado na cultura. Para Freud (1856-1939) as representações seriam como entidades analógicas e imagéticas. Teriam suas origens pela percepção, podendo ser por uma percepção interna como os traços mnésicos das excitações internas ou, externas, como as imagens mnésicas dos objetos. As duas possibilidades são imagens psíquicas de objetos e sensações exteriores ao aparelho psíquico que se relacionam em redes associativas e que se refletem na realidade externa, consequentemente, são extremamente hábeis de representar relações, eventos e outras representações simbólicas que pairem sobre o próprio imaginário coletivo, associando-se a outras já existentes, denegando, assim, um poder a este enunciado que transforme hábitos, crenças e por fim a própria cultura.  
Os símbolos que estão em torno da morte a nomeia como algo assustador e implacável, mesmo sendo a mesma ainda um grande enigma. Tememos mais a morte pelo que é pregado pela cultura do que propriamente dito por um saber a respeito do fenômeno ou pelo que vem depois dele. No entanto, a compreensão da Lei de Deus que está incutida em cada um de nós, leva-nos a refletir sobre o que fizemos de bom e agradável a Deus, quanto tínhamos a oportunidade de fazer. Tal compreensão e a constatação de que nada fizemos a respeito, fomenta o medo e as incertezas de um porvir para quem está nessa condição da espera do fatídico dia. A nosso ver existem dois pontos fundamentais nessa questão: a cultura com as representações em torno da morte e a consciência de cada um. Frisamos esses dois pontos pelo referencial de nosso trabalho. No entanto, existem muitos outros, sobretudo, o apego e a paixão pela vida que já conhecemos.  

REFERÊNCIAS
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 Artigo publicado na Revista Com Texto em 1º de Dezembro de 2012 - ISSN 1980-2293.




[1] Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Católica do Recife. Pós-graduado em Intervenções Clínica na Abordagem Psicanalítica pela Faculdade Frassineti do Recife. Graduando do 8° período de Psicologia.

[2] KOVÁCS, 1992, p. 16
[3] AUBERT, 1997, p. 17
[4] DE FRANCO, p. 90.

2 comentários:

  1. Amei......... Incríveis dados e conhecimento!

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  2. Parabéns, muito claro e objetivo, sempre é bem vindo novos conhecimentos.

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