Fonte:http://www.ahistoria.com.br/simbolo-da-morte-caveira/simbolo-da-morte-caveira/
Autor: Jorge Roberto Fragoso Lins[1]
Resumo: Os símbolos representativos em
torno da morte fomentam um imaginário de medo e angústia, aumentando ainda mais
o enigma sobre a finitude do homem. Este
artigo pretende construir um campo de saberes que envolve a sociologia,
antropologia, história, filosofia, psicologia e a psicanálise a respeito do
fenômeno da morte, trazendo alguns postulados e mudanças culturais que
existiram no transcurso da história da humanidade e que tanto inflenciaram no
imaginário coletivo.
Palavras-chave:
Morte; símbolos; significantes; enigmas.
INTRODUÇÃO
A cultura se constitui em um
mecanismo dinâmico, adaptativo e cumulativo. Sua celeridade é notória,
entretanto, obedece a um tempo que é pertinente a construção dos próprios
elementos culturais que se enraízam no seio de uma sociedade.
Definir o que é cultura não é uma tarefa
fácil. A cultura evoca interesses multidisciplinares, sendo estudada em áreas
como sociologia, antropologia, história, comunicação, administração, economia,
entre outras. Em cada uma dessas áreas ela é trabalhada a partir de distintos
enfoques. Tal realidade concerne ao próprio caráter transversal da cultura, que
perpassa diferentes campos da vida cotidiana. Além disso, a palavra “cultura”
também tem sido utilizada em diferentes campos semânticos, em substituição a
outros termos como “mentalidade”, “espírito”, “tradição” e “ideologia”(CUCHE,
2002, p.203). No pensamento iluminista francês, a cultura caracteriza o estado
do espírito cultivado pela instrução. “A cultura, para eles, é a soma dos
saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade,
ao longo de sua história”. (Ibid, p.21)
Entendemos por elementos
culturais aqueles que existem nas mentes das pessoas e que podem ser
simbolizados, como os símbolos criados e compreendidos por um povo, seus mitos,
suas religiões, o comportamento e os costumes mais usuais. Em suma, cultura é a
herança social que passa de uma geração a outra. Uma mudança cultural só ocorre
quando certas ferramentas agem como força motriz, de forma a criar novos
conceitos, a assimilar conceitos de outras culturas ou a fomentar descobertas
de algo ainda desconhecido da própria sociedade. Intrinsecamente a isto, estão as
representações que partirão desses novos conceitos e que alimentarão o
imaginário de um povo, com suas imagens, com seus discursos, crenças e
símbolos. Assim, uma palavra ou imagem é simbólica quando implica alguma coisa
além do seu significado manifesto ou imediato. Esta palavra ou esta imagem tem
um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo
explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-lo ou explicá-lo. Quando a
mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da
nossa razão (JUNG, O HOMEM E SEUS SÍMBOLOS, p.20).
A partir da imagem,
seguiremos para a definição de imaginário. “O vocábulo imaginário, ao assumir a
condição de substantivo, apresenta-se como resultado de fusão dialética entre
imagem e imaginação, pois a criação de imagens pressupõe o uso da imaginação
(TEIXEIRA, 2003). Sendo a imaginação compreendida como a capacidade de criar ou
representar objetos ausentes, ou ainda, como fantasia, devem-se destacar as
diferenciações entre fantasia e imaginário. “O imaginário possui um compromisso
com o real (...) recria e reordena a realidade, encontrando-se no campo da
interpretação”. (LAPLANTINE B & TRINDADE, 1996, p. 79) Já a fantasia é uma
criação da imaginação que não deixa de ter uma relação com a realidade, porém
não existe uma relação de compromisso, ou seja, uma relação identificatória com
a mesma.
Segundo Lacan (LACAN,
apud KAUFMANN, 1996, p. 261) não há meio de compreender o que quer que seja da
dialética analítica se não afirmarmos que o eu é uma construção imaginária.
Isso, o fato de ser imaginário,
não retira nada dele, desse pobre eu – diria até que isso é o que ele tem de
bom. Se ele não fosse imaginário,
não seríamos homens, seríamos luas. O que não quer dizer que basta termos esse
eu imaginário para sermos
homens. Podemos ser ainda essa coisa intermediária que se chama louco. Um louco
é justamente aquele que adere a esse imaginário,
pura e simplesmente. Para Lacan (1966-1967) mais do que um resto do
psiquismo imaginário infantil no inconsciente, a fantasia está estruturada como
linguagem, uma vez que é uma frase com estrutura gramatical, o que justifica
que se possa falar de uma lógica da fantasia. A exemplo podemos citar o texto
de Freud (1919). Nele, a fantasia “Uma criança é espancada” não é nada além da
articulação significante, representada pela frase “Uma criança é espancada”.
Toda essa cadeia imaginária
de representações e símbolos que inunda as diversas culturas representa
significantes que se misturam a própria cultura, dando sentido simbólico às
coisas e, ao mesmo tempo, possibilitando que novos significantes sejam criados.
Toda formação cultural passa por essa variável que é o significante,
construindo temáticas e símbolos que irão ser representados no discurso de cada
povo. Assim ocorre com o imaginário de um povo em relação à morte ou o que ela
de fato representa, um grande enigma. Não bastasse a sensação de impotência em
relação a ela, de que mais cedo ou mais tarde todos que se encontram vivos irão
experienciar tal acontecimento, somos levados por uma cultura de símbolos que a
deixa ainda mais assustadora, como por exemplo, a simbologia de um esqueleto
carregando uma foice, o anjo da morte ou, então, com um alto teor de cobrança
que nos faz temer, o temido e inescapável juízo final, que nos reporta a dois
outros símbolos, o do purgatório e o do inferno.
A morte pode ser concebida
como um dos maiores e mais importantes estados fronteiriços e liminares. Outros
simbolismos também relacionam-se à ambiguidade do limiar, como a ponte, que é
“a passagem da Terra ao Céu, do estado humano ao estado supra-humano, da
contingência à imortalidade, do mundo sensível ao mundo suprassensível”, e as
portas e os portais. Quando não se está nem de um lado, nem de outro, corre-se
o risco de cair no abismo. É um instante em que, tecnicamente, não se é nada e
tudo pode ruir. Do outro lado, mistério... (DE FRANCO, p. 45).
A
travessia entre um estágio e outro “acende” os pavores humanos, dando espaço às
criações imaginativas, que tentam replicar o universo anterior, conhecido, há
pouco afastado. A insegurança da morte abandona o indivíduo à sua consciência
confusa, em meio ao mistério do além daqui, do depois da morte (Ibid, p. 43).
Veremos, durante todo este
trabalho que a morte ocupa esse lugar social e psicológico da ambiguidade
incômoda, entre dois estados, o conhecido e o desconhecido, entre a
individualidade e o coletivo, este último representado pelo mergulho
arquetípico do ser humano ao morrer no universo do Além, elemento do inconsciente
coletivo ou do imaginário (Ibid, p. 42).
Assim, como tudo que envolve
o ser humano é passível de transformação, que vai de sua genética até seus
princípios ideológicos e comportamentais, a morte, como elemento cultural,
também já passou por diversas temáticas e representações até que chegássemos ao
que possuímos na atualidade. O nosso artigo,
visa compreender como os símbolos, os significantes e o próprio enigma que
envolve a morte implicam na forma como o nosso psíquico reage em relação a ela,
quer dizer, como nos comportamos ao nos defrontarmos com o fenômeno ou com seu
significante. Para isso, faremos um breve apanhado histórico, assinalando as
principais mudanças ocorridas em torno da morte na trajetória da humanidade.
Ter esse apanhado nos fará compreender melhor as representações que possuímos
atualmente sobre a morte e com isso esperamos proporcionar subsídios para as
mais diversas ciências que têm o ser humano como foco principal de suas
pesquisas e preocupações.
DESENVOLVIMENTO
O intrigante na trajetória da morte é o
próprio enigma que fomenta as representações e mudanças a respeito dela.
Como um acontecimento tão singular e que envolve apenas o falecido e o grupo a
ele relacionado, pode ao mesmo tempo ser ativo e passivo a tantas mudanças em
um contexto plural de uma ou várias sociedades? A isso poderíamos responder que
a (morte) como fenômeno produz várias implicações como, por exemplo, o fator psicológico,
as representações simbólicas e o próprio enigma que por si só ela representa.
Podemos centralizar a esses fatores, no símbolo, que para Jung
(1875 – 1961) ao mesmo tempo manifesta e impulsiona a psique. Sobre esta visão
podemos compreender que é através dos símbolos que são trazidas as novidades
para a consciência. Isto nos situa no histórico, em algo que é contextualizado
e que será apresentado numa dimensão de tempo, espaço e relação definidos. Jamais
poderemos isolar um símbolo. Se tal acontecesse, ele se tornaria apenas um
sinal, pois o símbolo para se constituir como tal dependerá da consciência que
o considera.
Não é fácil tratar do tema
morte, pois o enigma e o mito que por si só ela representa, deixa a qualquer ser humano pouco
à vontade para falar a respeito dela, como se observa claramente com a posição de negação em que
nos colocamos frente a ela. Segundo Ariès (1990), é a partir do século XX que
a civilização ocidental passa a esconder a morte, evitando falar sobre ela,
numa tentativa de proteger a vida. Como consequência, a atitude mais adequada
para lidar com a morte de um ente querido seria fingir que nada aconteceu, que
nada mudou, contribuindo, dessa forma, para o medo diante da morte, do
desconhecido. É também a partir do século XX que a morte deixou de ser apenas um acontecimento
isolado para ser objeto de pesquisa de psicólogos, sociólogos, antropólogos e
historiadores.
Ariès fala da morte como morte invertida. Existiria
uma inversão nas características da morte. Ela teria que acontecer
despercebida, pois a deixaria de ser considerada um fenômeno natural ao ser
vivo, passando a ser um fracasso. Tal representação leva a uma negação, a uma
não aceitação da morte e a uma falsa sensação de que viveremos eternamente,
aumentando, assim, o medo diante da morte. É importante lembrar nesse aspecto
que as representações se tornariam uma linguagem e, como tal, possuiriam os
seus símbolos que alimentam o imaginário coletivo de toda a humanidade.
No período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Freud (1856 –
1939) ficou bastante impressionado pela crueldade da guerra e das milhares de
vidas que foram ceifadas, escrevendo a respeito da morte em seu artigo
“Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte” (1915). Freud ressaltava que falamos
da morte como se nunca tivéssemos que ser surpreendidos, isto é, como se a
morte só ocorresse ao outro e, ainda assim, como obra do acaso. Afirma que, “no
inconscientemente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”. Em
relação a encarar a morte, mesmo do outro, não somos capazes de concordar que
quem sofre somos nós, e não os mortos, e por isso não há necessidade de se
fazer algo para eles. “A consideração pelos mortos que, afinal de contas, não
mais necessitam dela, é mais importante para nós do que a verdade e,
certamente, para a maioria de nós, do que a consideração pelos vivos” (Freud,
1915). Além de refletir sobre o enfrentamento da própria morte, Freud, em “Luto
e Melancolia” (1917), aborda a morte de alguém próximo, isto é, a perda e suas
consequências para quem fica. O próprio Freud enfrentou, não uma, mas algumas
vezes, a morte de frente. Tanto em relação à perda de sua filha, de seu filho e
de seu neto, quanto em relação à aquisição de um câncer, em 1923, que o
acompanhou até seus últimos dias.
A negação da morte poderá
ocorrer de diversas formas, tanto consciente como inconscientemente. Para
Cassorla (1998), a negação da morte é percebida quando ficamos sem saber como
agir diante de um conhecido que perdeu um ente querido, não lhe dando os
pêsames, evitando ir ao velório ou contando piadas no velório. Atitudes como
essas parecem colaborar para a percepção errônea de que tudo está bem, de que
nada aconteceu, por não querermos vivenciar o sentimento de dor e de sofrimento
pela perda. Negar que um dia iremos morrer é colocar-se contra a própria
finitude. Para Cassorla, a vida é o maior bem que temos, mas, para vivermos
bem, temos que aceitar que a morte faz parte da vida e que todos morreremos
algum dia.
Negar a morte é não querer
entrar em contato com as experiências que nos causam sofrimento, permitindo,
assim, segundo Kovács (2002), fantasiar a ilusão da imortalidade, dando a ideia
de força e de controle sobre o medo da morte.
O medo da morte "é a
resposta psicológica mais comum diante da morte", sendo, portanto, um
sentimento universal e vital, pois ajuda o indivíduo a superar os instintos
destrutivos[2].
Para Freud, assim como em muitos outros pontos de
nossa vida psíquica, o homem primeiro permanece inalterado no que se refere ao
seu inconsciente. Entretanto, quando a morte leva alguém que nos é caro, fruto
de um enorme investimento realizado pelo Eu, este mesmo Eu entra em conflito já
que o abalo provocado pela perda introjeta a possibilidade de ele ser o próximo
objeto de amor que venha a ser perdido, sucumbido pela morte. Segundo ele,
antes que ocorresse tal perda, existiria uma impossibilidade pelo inconsciente
da representação da própria morte, já que em si o fenômeno possui um conceito
bastante abstrato e apenas a partir de um confronto com a própria finitude é
que se consegue perceber a dimensão de uma perda, sobretudo da perda do mais
importante e cobiçado objeto de amor, fruto do maior e mais importante
investimento do Homem, a preservação de
sua própria vida.
O filósofo Karl Jaspers
(1883 – 1969) traz uma valiosa contribuição nesta discussão, ao ver a morte
como uma situação-limite, mas, sobretudo, com a possibilidade de vê-la como
sendo um importante componente para a estrutura interna do homem. Em sua visão
psicanalítica, Jaspers coloca o sujeito
não apenas numa situação de mero expectador de sua própria morte, mas numa
condição de reconstrução, de se olhar para dentro de sua própria alma, de se
olhar no espelho e ver sua própria consciência, reconhecendo-se ou não, como o
sujeito ativo de seus atos praticados.
Na raiz filosófica, na
cultura e entre as religiões, a morte sempre provocou as mais complexas e
variadas discussões e interpretações. Não raro também são manifestados os
símbolos imaginários e fantasiosos ao seu respeito.
Para Heidegger (1889-1976), filósofo do Existencialismo,
o homem existiria para a morte. Para as religiões, a morte
não seria um fim, mas uma passagem, uma transição para uma nova vida. Já para
os céticos, após a morte não existiria absolutamente nada. Então, por que
temê-la tanto? Teriam a filosofia, a cultura, as religiões e os céticos, de
alguma forma, fracassado em suas interpretações, deixando, assim, um vazio, um
vácuo a ser preenchido por um imaginário sombrio e assustador? Ou, diante de equívocos
apregoados como verdades absolutas, as próprias religiões e as representações
existentes na cultura de cada povo disseminaram símbolos que representariam o
quanto a morte seria assustadora e nefasta com aqueles que não compartilhassem
com seus ideias, no caso das religiões, ou de criar símbolos que assustam e
provocam o pavor no imaginário do ser humano, no caso da cultura. Quaisquer que
sejam as repostas, se de fato elas existem, fica claro que a morte é um grande
enigma, e o objetivo deste trabalho é mostrar o quanto de símbolos e
significantes dão sentido ao término de uma existência.
A morte é uma grande
metáfora que para o homem primitivo chegava a ser incongruente de sentido,
podendo ser menos cruel e aterradora para esse homem que se situava naquele
momento histórico da humanidade.
Muitas metáforas poderiam
auxiliar a humanidade pré-civilizada a elaborar o significado da morte: a do
dia e da noite, a dos ciclos dos astros, a das estações do ano, a metáfora da criança
e do adulto... A natureza tem muitos elementos que nos colocam frente ao
mistério dos ciclos de início e término, analogias da experiência vital, cujo
fim e percalços estão submetidos ao grande fluir do destino. E o mais
importante dessas metáforas é que o homem, através do contato com elas, volta a
perceber-se dentro de seus limites biológicos, dentro de sua condição de
animal, situação muitas vezes negligenciada pela sociedade contemporânea. (DE FRANCO,
2010, p. 47)
O homem pré-histórico teve
de relacionar-se com a morte, assim como teve de buscar alimentos, criar
ferramentas, descobrir potenciais a serem dominados na natureza... A morte
seria mais um dos desafios ao homem daquele tempo. É provável que, ao refletir
sobre o significado da morte e os ciclos biológicos e naturais, ele se conecte
com o que denominamos de “sobrenatural”, com as forças e explicações que
transcendem sua experiência imediata. Portanto, a morte pode ter sido um dos
caminhos para se conceber o que hoje entendemos por religião. E mais, a morte,
os mortos e como cada civilização lida com esse tema trazem materiais
riquíssimos à História, sendo um dos principais elementos de análise de uma
cultura antiga. Portanto, a morte merece nosso “carinho” analítico e acadêmico.
(Ibid, p. 47 – 48)
A pré-história revela-nos
que os povos “primitivos” acreditavam em alguma forma indefinida de sobrevida.
Em inúmeros casos, os ritos de sepultamento em posição agachada (ou fetal)
revelam a crença de que os mortos eram chamados a renascer para outra vida[3].
Segundo Ariès (2001, p. 28), o moribundo cumpria os últimos atos do cerimonial
tradicional, existindo, primeiramente, o lamento da vida, uma evocação triste,
mas muito discreta, dos seres e das coisas amadas, uma súmula reduzida a
algumas imagens. Chora e suspira. Mas essa emoção não dura como mais tarde,
existindo o luto dos sobreviventes. É um momento do ritual. Em seu artigo “Luto e Melancolia” (1917), Freud fala sobre a morte de
alguém próximo, a perda e suas consequências para quem fica. As consequências
destas perdas gerariam por sua vez o luto, principal manifestação do Eu, com
linguagem própria, de que ele está sofrendo pela ausência de um objeto amado
que deixou de existir como figura física que interagia e ocupava um espaço na
vida do sujeito, como os pais e outros entes queridos.
O luto poderá também ser compreendido
como à perda de alguma abstração que ocupava um lugar como objeto cobiçado pelo
sujeito e que se fazia importante na vida dele, como a perda da liberdade, o
término de um relacionamento amoroso, e assim por diante.
Conforme foi exposto por Ariès a
respeito da não existência do luto no século XII, não poderíamos deixar de
questionar o por que da não existia de tal sentimento de falta por quem
faleceu, já que o luto é a mais intensa expressão que assinala a perda de
alguém amado. Segundo o mesmo autor, “só durante a segunda metade da Idade
Média, do século XII ao século XV, existiu apego apaixonado às coisas e aos
seres possuídos durante a vida. O novo costume cultural em relação ao fenômeno
faz com que a humanidade transpasse a fase anterior e vivencie o novo que,
nesse caso, seria o apego e o apaixonamento pelas coisas e pelos seres
possuídos”. Substancialmente a isso, viria, então, o sofrer por ter perdido
alguém que se amava para a morte, constituindo, assim, o luto. Diante desse
processo de transição cultural o que se coloca como enigmático é sem dúvida a
própria transição, melhor dizendo, como essa mudança de costume ocorreu. Teria
a cultura a força de impor o que sentimos ou não por alguém, um alguém como o
pai, a mãe ou qualquer outro por quem nutrimos algum sentimento de apego? Mas,
se tal sentimento já existe de forma natural a construir os laços afetivos, por
que antes não existia essa demonstração de dor que representa o luto? Seria o
Grande Outro que neste caso estaria representado pela cultura que iria impor
regras a respeito do que se sente por alguém querido e amado?
Estar de luto é
lamentar a perda. Trata-se, para Freud, de um processo interior difícil, lento
e doloroso de adaptação a essas perdas. Segundo Judith Viorst em seu livro
“Perdas Necessárias” (1988), o término dessa lamentação depende de diversos
fatores, dentre eles o modo como sentimos nossa perda, da idade de quem
perdemos, da nossa própria idade, de como ocorreu à morte, de nossas forças
interiores e do apoio externo, além de depender de nossa história pessoal. É
uma etapa necessária para superar a dor. Já para Bromberg (2000), o luto é “uma
ferida que precisa de atenção para ser curada”. Para que haja esse processo de
cura é necessário reconhecer e aceitar a realidade de que a morte ocorreu e que
a relação com o falecido agora está acabada. Além disso, é preciso vivenciar e
lidar com as emoções e problemas que resultam dessa perda. Tudo isso leva um
período de tempo e depende exclusivamente de cada indivíduo e da sociedade em
que este vive, pois cada cultura tem a sua maneira de encarar a morte.
Segundo Lebrun (2004, p. 29), a
realidade psíquica do sujeito se organiza a partir da confrontação com a
assimetria de base da conjuntura familiar, que apenas representa a estrutura da
linguagem. Com efeito, é o Outro como lugar da linguagem que é presentificado
pela mãe e é no interior desse sistema linguageiro que deverá ter lugar a
operação que introduzirá o futuro sujeito a poder sustentar seu desejo
singular, não sendo outro a não ser o pai o agente dessa operação, o pai que
terá o encargo de conduzir a possibilidade de uma outra intervenção no lugar
onde a mãe consente em ser faltante.
Os primeiros representantes da
linguagem para o sujeito é a mãe e o pai, caso a mãe permita que o pai
participe dessa relação, evidentemente. Essa linguagem que está incorporada à
cultura, mas que também é própria, individual, possibilitará que o sujeito se
aliene da própria linguagem. Entretanto, não é a linguagem do Grande Outro, mas
a do Outro. A problematização se encontra justamente aí: como a cultura ou o
Grande Outro transforma os sentimentos (significantes), ora não sofro e nem me
permito sofrer por ter perdido alguém que amava; ora me apego apaixonado às
coisas e aos seres possuídos durante a vida. Estariam envolvidos nessa
transição cultural novos símbolos e significantes que provocaram as mudanças de
posturas desses sujeitos? Símbolos como, por exemplo, o do juízo final, que
atormentariam não só o moribundo como os que ficaram?
Le Goff (2002) afirma que o purgatório
firma-se no imaginário cristão como lugar mais “geograficamente” definido no
Além por volta do século XII, quando a Europa medieval passa por profundas
transformações socioeconômicas.
Presumimos,
baseados nesses símbolos assustadores disseminados pela religião, que foram
eles, os símbolos, que incutiram no imaginário do homem daquela época não só o
medo assustador de se defrontar com tamanha ‘realidade’, negando-a, mas também
os apegos às coisas e pessoas que morriam. Portanto, o homem exclui por
completo de sua vida a morte como questão a ser refletida e encarada como um
acontecimento decorrente da finitude de sua existência. Esta tentativa de
negação é inerente ao complexo mecanismo de defesa do Eu, já que, ao se
defrontar com o desconhecido, como a perda de seu mais desejado objeto de amor,
que é a sua própria vida, ao se confrontar com tantas outras realidades que lhe
causam medo e sofrimentos, ele simplesmente descarta. Talvez seja finalmente
este o motivo de pouco se falar no assunto em questão.
A espécie “merece” a morte, na medida
em que cometemos o pecado original, que trouxe uma crise de valores, invertendo
a lógica da vida e da morte. (DE FRANCO, p. 84)
O medo medieval é totalmente
compreensível diante de um cenário bastante instável. A morte nesse contexto
surge envolvida pelo horror do julgamento sobre as ações dos indivíduos. A
possibilidade de se queimar eternamente no inferno, associada à imagem do Deus
punitivo, ao qual se deve temer, configuram um imaginário que opõe prazer e
salvação, atrelando o primeiro à noção de pecado e condenação eterna[4].
Da Idade Medieval até, afora,
observa-se que muitos desses símbolos ainda estão presentes no imaginário
coletivo das pessoas, provocando os mesmos temores de antes. A questão da
salvação da alma até hoje ao neles que acreditam na sobrevivência do Espírito
após a morte. No entanto, não há como não associar esse temor de não ter a sua
alma salva com a simbologia criada pela teologia católica do juízo final, onde
Deus, Criador e Pai de todos nós, designaria a sentença de cada um de seus
filhos, atribuindo a recompensa ou o castigo definitivo (eterno) de cada alma. Ou, então, o juízo geral, universal ou final,
esse aconteceria publicamente no fim do mundo, depois da ressurreição dos
corpos.
O simbolismo do juízo final está
incutido em muitas culturas e representa até hoje o maior e mais terrível
símbolo associativo da morte, criando no inconsciente de quem possui a crença
de uma vida além-túmulo, a angústia de se ver castigado por Deus, o Pai Todo
Poderoso, a Instância Maior da Lei, a Própria Lei. Este Pai que ocupa a
subjetividade dos que creem Nele e se insere como Lei nas consciências humanas.
A angústia de enfrentar a sentença desta Lei representa a de enfrentar a
própria consciência, que antes fora suprimida, e este enfrentamento é
assustador, pois ao mesmo tempo em que se enfrenta a própria consciência, também
se coloca sob os olhos de Deus, o Pai Todo Poderoso, a Instância Maior da Lei,
a Própria Lei.
Para Jung (1875-1961),
Deus seria menos transcendente e Criador e mais imanente e interior na
realidade psíquica de cada um. “É apenas através da psique que podemos
estabelecer que Deus age sobre nós”. Para Jung, existe um Arquétipo de
Completude no Inconsciente Coletivo que ocupa uma posição central e ordenada e se
aproximaria do Deus-imagem. Seria o Arquétipo da Unidade. “O processo de
individuação, subordina o múltiplo ao Uno. O Uno, porém, é Deus, o qual, em
nós, corresponde à imago Dei, a imagem de Deus”.
A ideia do Uno sempre esteve
presente desde os primórdios da Filosofia, como em Orfeu e Pitágoras, e em
Plotino, no início da era Cristã, quando teve seu apogeu e então ocorreu sua
substituição pelo Arquétipo do Cristo.
Jung postulava que a imago
Dei ou imagem de Deus seria a realidade de uma imagem de Deus como um Símbolo
unificador e transcendente, capaz de reunir fragmentos psíquicos heterogêneos ou
unir opostos polarizados. Para Jung, a imagem de Deus indicaria uma realidade
que transcenderia a consciência e que seria excessivamente numinosa detendo a atenção
e atraindo energia. Seria uma ideia que fora imposta à humanidade, tendo sido compartilhada
nas mais variadas regiões do mundo e em eras bem distintas. Podemos, então,
definir o pensamento de Jung em relação a Deus que Ele seria uma imagem única,
dominante supremo na hierarquia psíquica, e estaria relacionada ao próprio
Self. Esclarecendo a diferença entre Deus e a imagem de Deus, diz ele, “É por
causa da constante indiscriminação entre objeto e imago que as pessoas não
conseguem fazer uma distinção conceitual entre Deus e imagem de Deus, e,
portanto, pensam que, quando se fala em imagem de Deus, está se falando de Deus
e apresentando explicações teológicas. Não cabe à psicologia, como uma ciência,
exigir uma hipostatização da imagem de Deus.
Novas concepções em relação ao
pós-morte foram disseminadas, dando uma nova visão ao tema, mas nem por isso a
morte deixou de ser temida pela grande maioria das pessoas, talvez por causa
ainda desse imaginário sombrio em relação ao fenômeno pregado pelas religiões:
o próprio enigma que ela representa, as incertezas sobre o que irá ocorrer
depois do último suspiro, e, somado a isso, a onipotência do narcisismo humano,
o estar sempre apaixonado por si mesmo e não considerar, jamais, que tal
situação de vida e de onipotência possa um dia se extinguir. Freud fala de
estar apaixonado pelo objeto. “O apaixonado consiste num transbordar da
libido narcisista sobre o objeto, tendo a virtude de cancelar repressões e
restabelecer perversões” (FREUD, 1914/1988).
O apaixonamento em questão seria o da
própria existência e de tudo relacionado a ela que trouxer felicidade e gozo. O
apaixonamento representaria, assim, uma via imediata de acesso ao ideal do eu e
à onipotência narcísica. Recorrendo às ideias de Karl Jaspers (1883-1969), o ser
humano, mesmo diante das duas únicas certezas que possui sobre a vida, a de que
um dia nasceu e a que um dia morrerá, sempre afastará a última de seu caminho
por ser algo extremamente assustador. A função do afastamento que corresponde a
de uma negação serve para que o homem vivencie com plenitude sua existência.
Entretanto, em certos casos, esta função é extrapolada e o sujeito viveria uma
onipotência narcísica que o levaria a pensar que jamais passará pela fatídica
experiência. Ventilando uma possibilidade, poderíamos dizer que o Ego estaria
tão assustado de passar por essa experiência que o melhor e mais prazeroso é
colocar-se na posição de imortalidade.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Em 1961, através da obra do
psicólogo europeu Serge Moscovici (1928-1975), intitulada A psicanálise, sua
imagem e seu público, as representações sociais tiveram o seu princípio teórico
constituído. A Teoria das Representações Sociais objetivam explicar os
fenômenos ocorridos com o homem a partir de uma perspectiva coletiva, considerando
a individualidade de cada sujeito. A de Moscovici provoca um estudo das
simbologias sociais, ou seja, das trocas simbólicas que existem nos mais
variados meios sociais. Moscovici salienta que as trocas simbólicas influenciam sobremaneira na construção do conhecimento
compartilhado que está impregnado na cultura. Para Freud (1856-1939) as
representações seriam como entidades analógicas e imagéticas. Teriam suas
origens pela percepção, podendo ser por uma percepção interna como os traços
mnésicos das excitações internas ou, externas, como as imagens mnésicas dos
objetos. As duas possibilidades são imagens psíquicas de objetos e sensações exteriores
ao aparelho psíquico que se relacionam em redes associativas e que se refletem
na realidade externa, consequentemente, são extremamente hábeis de representar
relações, eventos e outras representações simbólicas que pairem sobre o próprio
imaginário coletivo, associando-se a outras já existentes, denegando, assim, um
poder a este enunciado que transforme hábitos, crenças e por fim a própria
cultura.
Os símbolos que estão em
torno da morte a nomeia como algo assustador e implacável, mesmo sendo a mesma ainda
um grande enigma. Tememos mais a morte pelo que é pregado pela cultura do que
propriamente dito por um saber a respeito do fenômeno ou pelo que vem depois
dele. No entanto, a compreensão da Lei de Deus que está incutida em cada um de
nós, leva-nos a refletir sobre o que fizemos de bom e agradável a Deus, quanto
tínhamos a oportunidade de fazer. Tal compreensão e a constatação de que nada
fizemos a respeito, fomenta o medo e as incertezas de um porvir para quem está
nessa condição da espera do fatídico dia. A nosso ver existem dois pontos
fundamentais nessa questão: a cultura com as representações em torno da morte e
a consciência de cada um. Frisamos esses dois pontos pelo referencial de nosso
trabalho. No entanto, existem muitos outros, sobretudo, o apego e a paixão pela
vida que já conhecemos.
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Artigo publicado na Revista Com Texto em 1º de Dezembro de 2012 - ISSN 1980-2293.
Amei......... Incríveis dados e conhecimento!
ResponderExcluirParabéns, muito claro e objetivo, sempre é bem vindo novos conhecimentos.
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