domingo, 7 de julho de 2013

UMA BREVE LEITURA DO MUNDO CONTEMPORÂNEO


O mundo contemporâneo é, sobretudo, um mundo de eclosões tecnológicas que favorece a uma nova ótica de ver e experienciar a vida.  É uma era enigmática que rompeu drasticamente com o tradicional continuísmo cultural, estabelecendo outras normas de condutas antes desconhecidas ou pouquíssimas usuais. A isso, observamos que o mundo atual, provavelmente contrapondo-se aos excessos de autoritarismo existente nos séculos passados, com o apoio da tecnologia, vem promovendo uma revolução dos costumes que sinaliza para uma homogeneização das diferenças, ou seja, para um mundo com pouquíssima singularidade, onde se hasteia a bandeira do tudo pode; do viver para gozar, não importando por qual via seja; do consumismo desenfreado quase ensandecido e pelos frágeis vínculos relacionais que se rompem com um simples delete de e-mail. Cardoso (1996, p. 67), “sugere que as mudanças processadas no modo de vida do homem e na organização da sociedade constituem um marco delimitado de duas épocas, rompendo com a ética e os valores antes professados”.

            No entanto, pelo entendimento de Da Point (2001),


vivemos em uma sociedade sem herança, de indivíduos órfãos de ideais e de verdades simbólicas que correm atrás da sedução das imagens que lhes são impostas de inúmeros modos. Na falta de identificações tentam arrumar uma identidade que lhes permita viver os instantes, identidades adotadas sem firmeza alguma, pois o mundo de hoje exige volatilidade, mudanças, trocas, descartabilidade. (DA POINT, 2001, p. 12)


            A impressão que fica diante de toda essa volatilidade é de que tudo que acontece está sobre uma espécie de plataforma giratória que se movimenta sobre um ângulo de 180º e de forma contínua e acelerada, provocando situações novas e surpreendentes de uma constante construção do comportamento e das relações humanas, sendo que, de uma forma bastante peculiar a esse sujeito. A isso, Bauman (2001) propõe a metáfora da liquidez, que para ele, descreveria bem a sociedade atual. Para o sociólogo, esta sociedade caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma, ou seja, as referências, estilo de vida, crenças, convicções e as próprias instituições estão mudando de forma tão rápida que não estaria dando tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades.  “Os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é que importa” (BAUMAN, 2001, p.8). Conforme Levy, que faz uma leitura psicanalítica sobre os fenômenos sociais,


a transposição da psicanálise para o campo social está baseada na existência de uma memória, de um imaginário, de emoções coletivas que impregnam, conscientemente ou não, a psicologia dos indivíduos, e impõe sua lógica própria aos processos organizacionais e grupais. Sob esse aspecto, os ‘fatos sociais’ podem ser objeto de processos de recalcamento, de esquecimento e, pois, de um trabalho de desenvolvimento ou de análise. Mas essa lógica não é única; o campo social comporta suas próprias regras, suas próprias leis, estudadas por outras disciplinas, que a psicanálise não pode ignorar ou subestimar (LEVY, 2001, p. 44).


            Freud (1856-1939) em muitos de seus escritos menciona o elo existente entre a cultura e o inconsciente. Lacan (1958) ao fazer a releitura dos textos de Freud, introduziu o conceito do Outro, delimitando o campo do simbólico e do significante, afirmando que o inconsciente é o discurso do Outro.

            Quando Lacan enuncia que o inconsciente é o discurso do Outro, ele quer dizer que ele só se reveste nesse sentido na medida em que for remetido a outro significante, mas para isso é necessário que o sujeito faça parte da linguagem. Como o significante é um sinal, ele poderá ser um sinal de ausência, mas de ausência do Outro. Então, para que o indivíduo esteja estruturado pela lógica dos significantes, ele deverá estar inserido no simbólico, onde as palavras estão pelas coisas. Nesse sentido, destacaríamos as dimensões dos três registros, a saber, o imaginário, o simbólico e o real que ao se articularem construirão o nó borromeu.

            Quando nos reportamos ao discurso do outro não podemos deixar de salientar que o princípio da alteridade parte do pressuposto que é mediante o contato com o Outro que existirá o “eu-individual, possuidor de uma singularidade própria. É a concepção de que todo homem social interage e interdepende de outros, ou seja, é um ser que pertencente ao social, interage e depende de seu meio para viver.

            No entanto, o que se observa é uma forte inclinação para o individualismo e o egocentrismo que, por sua vez, contribui na formação de indivíduos solitários e descompromissados de vínculos afetivos mais consistentes. De acordo com o pensamento de Birman (2003, p. 168), o que distingue a pós-modernidade é, sobretudo, a cultura do narcisismo e do espetáculo, na qual o individualismo e o autocentramento do sujeito tomam enormes proporções. Conforme o autor, “o indivíduo da atualidade procura a exaltação do eu e, utiliza-se de todo e qualquer modo de aparecer no cenário social seja através da estetização de sua aparência, ou do uso do Outro como fonte do próprio prazer” (Ibid., p. 246).

            O virtual é a maneira mais prática e cômoda de se relacionar e de se buscar prazer. É um não querer se dispor aos conflitos e as diferenças existentes numa relação compartilhada online; é buscar o anonimato para ser outra pessoa ou para realizar fantasias, muitas, pervertidas; é conhecer todas as pessoas do mundo e ao mesmo tempo não conhecer ninguém; é reviver um antigo costume da infância e adolescência de escrever experiências cotidianas no diário, agora através das redes sociais, e tantas outras coisas que sujeito contemporâneo busca fazer apenas na companhia solitária de seu computador. Que fique claro que, o que estamos  frisando é a utilização do virtual de forma equivocada e destorcida, e não seu uso sadio que se coloca como uma importante ferramenta para inúmeras finalidades, haja vista a internet.

            O virtual parece ser apenas parte de um grande novelo que demandaria outros aspectos, como o da cultura e da personalidade desse novo sujeito. Grosso modo, parece que o sujeito contemporâneo tenta com suas ações tamponar alguma falta; já, outros, buscam e só o além do princípio do prazer. Entretanto, ambos, por motivos e sentidos pertinentes às suas particularidades, estão experienciando cada vez mais e da forma que lhe convêm, o gozo. O sujeito contemporâneo é sem sombras de dúvidas muito pulsional e “irá se definir pelo real do corpo, da genética, dos psicofármacos, do sexo, da beleza, da velhice” (DA POINT, 2001, p. 14).  

Vive-se em um mundo que não se admite a menor angústia, o menor sofrimento, a menor tristeza que logo se busca o fim do mal-estar através da química. A cultura atual dentre outras coisas posiciona-se contra a qualquer tipo de mal-estar, o que nos deixa intrigado se isso de fato é possível e nos reporta a dois questionamentos: que tipo de estrutura psíquica é essa que não suporta a mínima angústia, a mínima tristeza, o mínimo mal-estar que logo parte para a medicalização? Que sujeito é esse que não suporta sofrer? Que indivíduo é esse que para se livrar de algum mal-estar recorre as mais variadas dependências que, pelas repetições, tornam-se compulsivas? Afinal de contas, o mal-estar representa fator constitutivo do sujeito, pois significa algo de sua realidade e pelo que se parece, deseja-se a todo custo fugir de qualquer realidade que traga infortúnios. Segundo Melman (1992, p. 141), “as coisas começam a ir mal quando há um movimento de ideias, de modificações éticas que começam a dizer que o mal-estar não é um bem”. A isso, leva-nos depreender que o sujeito contemporâneo não busca se conhecer em sua integralidade, corpo e mente. Isto, porque é preferível a fuga ao doloroso embate de se reconhecer no sujeito do inconsciente, onde serão reveladas suas verdades, retendo-se, assim, apenas a subserviência de seu discurso consciente que é muito mais prazeroso.

            O consumo apresenta-se como um dos grandes imperativos desse novo tempo, ou seja, como um fenômeno que representa a lógica do moderno hedonismo, a saber, a busca incessante do prazer. Debord (2006, p. 45) faz um neologismo interessante entre o consumo e a dita por ele “sociedade do espetáculo”. O autor menciona um mundo regido pela economia do consumo, tendo a mercadoria como centro absoluto da vida social, gerando a passagem do ser para o ter. Os objetos substituiriam os valores éticos, onde ocorre uma ininterrupta fabricação de “pseudo-necessidades”. O filósofo demarca a contemporaneidade centrando o triunfo do individualismo em associação ao consumo e como demanda incessante de prazer, criando modelos de subjetivação que acentuam a “exterioridade” e “autocentramento” (p.108).

            O pensar de Debord só corrobora com o que se observa na realidade, um consumo desenfreado que objetiva uma busca voraz pela satisfação do que pelo que de fato é desejado, uma vez satisfeito em sua demanda, logo se projeta a substituição por outro desejo. Em suma, para que se possa sentir a prolongação de uma satisfação, consome mais e mais. Portanto, estamos falando do mesmo mecanismo existente na dependência das drogas, ou seja, da repetição, da compulsão. 

            Recorrendo a psicanálise, Freud dizia que,


O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades representadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas com uma manifestação episódica. Quando qual que situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue (FREUD, 1974, p. 95).


            Portanto, é por ter um sentimento de contentamento muito tênue que logo é dissipado, que o sujeito correrá atrás de repetir a ou as experiências que o levaram a satisfação ou, mesmo, partir para outras, já que uma compulsão poderá motivar o surgimento de outras em uma sistemática migratória que favoreça a manutenção da satisfação, ou melhor, dizendo, do gozo, a saber, recorrendo ao consumo das drogas lícitas como as bebidas alcoólicas, extremamente propagadas mela mídia, ou das drogas ilícitas como a maconha, cocaína, heroína, crack, ecstasy, LSD e tantas outras. 

            Farah (2002, p. 41) assinala uma completa inversão na atualidade do que preconizou Freud sobre a noção de felicidade efêmera:


[...] o sujeito hoje não hesita em trocar segurança por felicidade imediata. Com a depreciação da história e ênfase no presente, a satisfação não pode ser depositada no futuro. Tem que ser consumida instantaneamente. A passagem da sociedade moderna pode ser entendida a partir do deslocamento sugerido por Zygmunt Bauman: a passagem da ética do trabalho para a estética do consumo.


            Diante de tudo que foi exposto fica patente à pressa que o sujeito contemporâneo tem em querer se satisfazer, não importando como, e também que o móbil muitas vezes é pela via do devaneio ou da fantasia, colocando-se em um lugar de extrema supremacia narcísica. A satisfação poderá ocorrer única e exclusivamente pela solidão de seu imaginário, através, por exemplo, numa sala de bate-papo, em um cybersexo, nos jogos, leilões e em toda forma de consumo. 

            Outro aspecto imperativo nos dias atuais é o da evitação a qualquer tipo de sofrimento, seja ele qual for, e para isso, o melhor caminho a ser tomado é o de recorrer à química. Quando, não, busca-se eliminar o mal-estar através de uma satisfação imediata, pois o sujeito contemporâneo age levado pelo imediatismo das coisas, procurando, então, um meio, um escape para sua tensão.

            A isso, observa-se que a instância proibitiva representada pelo supereu que deveria internalizar a cultura e as leis, legitimando, assim, sua função de censura. Hoje, parece estar em forte decadência ou a serviço das pulsões. Provavelmente, em decorrência pelo declínio social da imago paterna. A exigência de satisfazer as pulsões é o que prevalece no mundo contemporâneo, mesmo que para isso se chegue ao adoecimento das compulsões severas, quer através da química ou não. Abre-se, então, as portas para as novas compulsões, compreendidas como adicção. A palavra “adicção” tem sua origem etimológica no antigo Império Romano, conforme apontam alguns antropólogos e historiadores. Adicção, na lei Romana, segundo a enciclopédia francesa do século XVIII de Diderot e D’ Alembert, “é a ação de fazer passar ou de transferir bens a um outro, seja por sentença de uma corte, seja por via de venda àquele que oferece mais”(DIDEROT; D’ALEMBERT, 1751/1988, p. 128).
                       


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